quinta-feira, 29 de novembro de 2012

95. O "SHIN" de "SHINGITAI".

Em regra geral, em se tratando da transmissão de conhecimento, existem muitos conceitos que causam bastante confusão no meio marcial. E a razão para o aparecimento destes problemas de interpretação (no ocidente) sobre os conceitos japoneses reside na falta de contexto onde estes mesmos conceitos devem ser aplicados.
Um destes conceitos, bastante recorrente, é a expressão SHINGITAI 心技体, literalmente: “Espírito, técnica e corpo”.
Como sempre, vamos – em primeiro lugar – entender a expressão japonesa e só depois tecer os devidos comentários.
Esta expressão é composta por três ideogramas:
SHIN – “Espírito”.
GI – “Técnica(s)”.
TAI – “Corpo” ou “condicionamento físico”.
Antigamente, dizia-se que o treino deveria ser feito de tal forma que a importância em cada área fosse 60%, 30% e 10% respectivamente, dando atenção ao treino do “espírito” em primeiro lugar, depois às técnicas e, por fim, ao condicionamento físico.
É simples entendermos sobre o que tratam as partes da “Técnica” e a parte do “Condicionamento físico”, mas as coisas ficam bastante complicadas quando entramos no terreno “Espírito”.
Antes de tudo, cumpre-me chamar a vossa atenção para o fato do que a abordagem a ser feita a seguir representa a minha opinião e experiência pessoal no ensino desta expressão àqueles com quem partilhei conceitos básicos japoneses e é uma forma bastante simples para fazer entender algo que pode ser bastante complexo, dependendo do grau de profundidade dado a esta expressão. Além disso, testei os conceitos a seguir na vida diária e comprovei que estes correspondem à realidade que eu vivi e vivo.
Colocadas as considerações iniciais, passemos à pergunta fundamental e crucial que origina qualquer discussão ao redor desta expressão: “o que é o espírito?”
É exatamente neste ponto que 99,99% daqueles que abordam este assunto cometem as maiores barbaridades! Por quê? Porque esquecem o mais elementar dos fatores: o contexto! O “contexto” é capaz de explicar praticamente tudo a respeito das artes marciais japonesas, desde que entendido corretamente. Falar sobre “espírito” ou “espiritualidade” implica saber “onde” e “como” esta “espiritualidade” está inserida quando da sua utilização num determinado contexto – neste caso, as artes marciais.
Assim, em primeiro lugar, é necessário “posicionar” o assunto no contexto correto!
Quando autores ocidentais abordam o assunto SHINGITAI, frequentemente o ideograma SHIN “espírito” remete a matéria para o campo da fé, da religiosidade, do misticismo, das “forças invisíveis” e, portanto, “algo” forçosamente DEVE “justificar” esta linha de pensamento!
Como este pensamento orientado à religiosidade exige uma justificativa para a qual não há qualquer fundamentação efetiva que o conecte diretamente com as artes marciais, os disparates começam a surgir: atribui-se o termo “Zen” a quase TUDO que se faça a nível de Budō (pois “algo” TEM DE “justificar” a religiosidade)... nem que seja um devaneio pouco racional!
Assim, de forma bastante grosseira, irrefletida e simplista, abrevia-se «Espiritualidade = Zen», porque no ocidente vemos “espiritualidade” SEMPRE ligada a uma “religião” (católica, budista, judaica, etc). Consequentemente, seguindo esta linha de pensamento, “as artes marciais têm de ter uma “religiosidade” associada"!
ERRADO!
Se alguém com um excelente condicionamento físico for ao chão e não tiver “espírito” (força de vontade) para levantar… de que adianta o condicionamento físico?
Se alguém com uma técnica impressionante não tiver “espírito” (vontade ou determinação) para combater… de que adianta a técnica?
O que comprova que o treino do “espírito” (aquilo que nos faz avançar e a superar as nossas próprias dificuldades) é «ou deveria ser», realmente, o ponto mais importante a ser trabalhado.
Se estivermos em mau ou péssimo condicionamento físico, mas a nossa mente (“espírito”) disser para levantarmos e continuar, então levantamos e continuamos! Se as nossas técnicas não forem boas o suficiente, mas a nossa mente (“espírito”) disser para continuarmos a lutar, então continuaremos a lutar!
Enquanto o “espírito” ocidental está direta ou indiretamente ligado, realmente, a uma corrente “religiosa” (seja ela qual for), a IDEIA de “espírito” a nível marcial pode ser direcionada a determinado campo de atividade e NÃO implica necessariamente uma religião ou filosofia específica. Por exemplo, no oriente, pode-se muito bem passar uma vida inteira atrás da “iluminação” espiritual e nunca a atingir (devido a fatores diversos) e – simultaneamente – ser um excelente guerreiro! Porque o “espírito” marcial” nada tem a ver com o “espírito religioso”! É justamente a respeito do “espírito marcial”, do “espírito de guerreiro” que faz referência a expressão SHINGITAI… Não está escrito em parte alguma que o SHINGITAI tem a ver com alguma religião ou filosofia em particular! Esta “suposição” pouco refletida é coisa “recente”.
O “espírito marcial” a que se refere a expressão SHINGITAI é a nossa determinação, é a nossa vontade, o nosso empenho particular. É a nossa honra, a nossa moral, a nossa ética, a nossa “retidão espiritual”. E isso é visível nas palavras dos mestres antigos:

佛神は尊し佛神をたのます。“Mesmo que Buda e os Deuses sejam importantes, não dependa das suas providências.”
Miyamoto Musashi – in "Os 21 preceitos do Dokkōdō."

正勝吾勝勝速日“A vitória será verdadeira, justa ou correta na medida em que for sobre nós mesmos e todos os dias temos a chance de alcançá-la.”
Ueshiba Morihei – Fundador do Aikidō.

      力必達“Se alguém se esforçar (realmente), atingirá os seus objetivos.”
            Kanō Jigorō – Fundador do Jūdō.

            Nestes casos há referência ao esforço pessoal, sendo que Miyamoto vai mais longe e diz que (na hora do combate) o melhor é contar consigo mesmo. Mas, também é sabido que a cultura do “esforço pessoal” tem sido bastante menosprezada nestes últimos tempos… “A Lei do menor esforço”, dizem.
            Portanto, o SHIN, o “espírito” de SHINGITAI não traz em si qualquer religiosidade, é apenas a expressão do nosso esforço diário, dentro ou fora do Dōjō, ajudando-nos a levantar a cada queda, com determinação e empenho - tornando-nos mais fortes a cada dia, independente da idade, sexo, constituição física ou grau técnico, pois é isso que se espera de um guerreiro e, de forma bastante simples, nada tem a ver com uma religião ou filosofia específica (sendo que estas podem, na realidade, auxiliar o processo de fortalecimento mental do praticante).
            Para finalizar, por SHIN "espírito" entenda-se a seguinte expressão: 倒れて後止む。”Só pare de lutar DEPOIS de morto!”

domingo, 11 de novembro de 2012

94. Reflexões - Exames de Graduação.


            Não há escola de artes marciais japonesas – a nível mundial – que não tenham exames de graduação. E esta afirmação é válida para diversas artes, tais como: o Karate-dō 空手道, Jūdō 柔道, Aikidō 合氣道, Kenpō 拳法, Ninpō 忍法 (superficialmente chamado de Nin-jutsu), Shin-jūjutsu 新柔術 (“o Neo-jūjutsu”) etc..
            Independente das razões – plausíveis ou não – a realidade dos exames de graduação parece ser a mesma nos quatro cantos do planeta, isto é, os resultados são normalmente bastante previsíveis.
Assim sendo, para esta “breve” reflexão, vou dividir o assunto da seguinte maneira:
1. Os requisitos mínimos para o exame.
2. O programa do exame.
3. O exame propriamente dito.
4. O resultado do exame.
Portanto, vamos ao que interessa:

1.      OS REQUISITOS MÍNIMOS PARA O EXAME.

Os problemas começam aqui…
O que se entende REALMENTE por “requisitos mínimos”?
Vamos começar pelo “elementar”: não existe duas pessoas iguais, portanto, o que pode ser mínimo para um pode ser o máximo para outro (em termos bastante exagerados). Contudo, é indiscutível que as pessoas não têm a mesma velocidade de aprendizado e, por isso, dificilmente se conseguiria um “requisito mínimo” que satisfizesse todas as condições existentes em um determinado Dōjō.
Alguém agora vai contrapor:
“Os requisitos mínimos foram feitos com base em uma média ponderada do número de alunos existentes dentro de determinada modalidade!”
Ao que eu vou responder:
Isso é uma explicação estúpida!!
E por que eu digo isso? Basicamente, a ser verdade essa treta da “média ponderada” (eu já ouvi tal desculpa algumas vezes), a estatística a respeito dos requisitos mínimos deveria ser feita de forma dinâmica, isto é, alterada periodicamente a fim de refletir os alunos novos que entram e alguns alunos que saem.
Sejamos honestos: isso NUNCA é feito!
No decorrer da linha temporal de um determinado estilo, alguém determinou os requisitos mínimos e estes vieram para ficar, sem que tenham qualquer fundamentação lógica. Assim, dizer que os requisitos mínimos refletem alguma “média geral” é um disparate completo!
Mas, quer gostemos ou não, os requisitos mínimos existem (em algumas escolas). Portanto, o que vem a seguir é:
“Para que servem tais requisitos mínimos?”
«Teoricamente» os requisitos mínimos seriam aquelas condições limites que, se não satisfeitas, impediriam ao candidato o acesso ao exame de graduação.
Isso é bastante questionável tendo como base o fato de as pessoas serem diferentes entre si e, portanto, seria necessária uma tabela de requisitos flexível…
Mas, na vida real, estas condições são “obedecidas” com base no que está definido e pronto. Assim, mesmo que pouco racionais, os requisitos servem para impedir determinados embaraços em se tratando de nivelar os candidatos a determinada graduação.

2.      O PROGRMA DO EXAME.

A situação continua a deteriorar a cada instante que avançamos neste assunto, porque, por incrível que isso possa parecer, o assunto “PROGRAMA DO EXAME” ainda é tabu em algumas escolas! A falta de transparência e mistério que apresentam algumas escolas e instrutores a respeito do programa de exame é, por si só, um sinal alarmante de que algo não está bem.
E qual é o motivo deste “véu de mistério” que envolve o programa do exame? Isso é simples: porque muitas escolas realmente não têm um programa de graduações definido! Nestes casos, o exame é uma mistura de coisas feitas às pressas (nas coxas) com um punhado de coisas pedidas ao acaso… onde aqueles alunos que são “mais amiguinhos” do instrutor (ou submetidos a outras situações mais obscuras) sempre saem com a graduação pretendida, infelizmente.
Novamente, vamos começar pelo princípio respondendo à pergunta:
“O que é um programa de exame?”
«Teoricamente» um programa de exame é a descrição do conhecimento e técnicas fundamentais que um candidato à determinada graduação deve saber. Sendo progressivo e acumulativo, isto é, o programa indica de forma sequencial todo o conhecimento que deve possuir o candidato para o exame a que se propõe sendo que este sempre irá acumular os programas precedentes.
Até aqui, nada de novidade…
A questão agora é:
“A respeito de que «conhecimento» estamos a falar?”
Eis um dos pontos fulcrais dos exames de graduação!
Na esmagadora maioria das escolas de artes marciais japonesas a nível MUNDIAL, quando falamos de «conhecimento» referimo-nos apenas às questões “práticas” de determinada arte, sendo que as questões “teóricas” são apenas raramente mencionadas ou não existem de todo (e, quando existem, apenas aparecem nos exames para faixas pretas)!
Nas boas escolas, aquelas que seguem uma linha tradicional de ensino japonês, o programa inclui «conhecimento» teórico e prático, pois é a teoria fundamenta a prática. Nas “outras” escolas, o aspecto “prático” dita 100% do exame.
Não quero dizer que as “outras” escolas estejam “erradas”, apenas contemplam 50% daquilo que deveria ser ensinado a respeito de determinada arte marcial, mas isto já é uma questão de escolha de cada instrutor em particular. Como tudo, é minha opinião pessoal que há bons instrutores e que existem os “outros”.
Não vou comentar sobre isso, porque é um assunto que pode ser amplamente visto aqui no meu blog na parte de Bunbu-ichi e a sua respectiva fundamentação.

3.      O EXAME PROPRIAMENTE DITO.

Bem. Sem blá blá blá inútil e tretas transcendentais:
“O que vemos na realidade (excetuando as boas escolas)?”
Marca-se um final de semana para serem verificados apenas os aspectos “práticos” de uma determinada arte e... fim!
Mesmo que pareça «só isso», há de se saber ler nas “entrelinhas” do que acabou de ocorrer! Para começar, existem três tipos de exames identificáveis à partida:

1.      O exame de Kyū (faixas coloridas). **
2.      O exame de Shodan (faixa preta inicial). **********
3.      O exame de Dan (faixas pretas subsequentes). *****
(Os asteriscos são os graus de dificuldade de 0 a 10.)

Observem que eu nem vou entrar no assunto sobre as diferenças entre “graduações de faixas pretas" e as “graduações de instrutor”… (^_^)
Pois bem, em «regra geral», os exames das graduações coloridas são bastante flexíveis e, em certa medida, bastante adaptáveis. O grau de exigência é baixo ou baixíssimo e não se dá a importância aos detalhes.
Quando o candidato chega à faixa marrom/castanha deverá ser submetido ao exame para a faixa preta inicial… aqui as coisas ficam mesmo feias! Deixa-se um período de uma certa liberdade e facilitismo e entra-se no “ritual de passagem”, quando o aluno deixa as faixas coloridas para trás (literalmente) e passa a ser um Sensei (sem saber o que isso significa realmente). Ao faixa marrom é exigido tudo e mais além.
Por fim, chega-se aos exames de Dan, novamente o grau de exigência cai consideravelmente e assim será até ao final da vida de praticante.
Estas são «regras gerais», ou seja, aquilo que é mais fácil de encontrar quando se assiste a um exame de artes marciais japonesas. Naturalmente, as exceções confirmam as regras, portanto, não é algo “absoluto” (piores e melhores exemplos são encontrados).

4.      O RESULTADO DO EXAME.

Considerando-se todo o universo dos praticantes de artes marciais japonesas a nível mundial, pode-se afirmar – com certeza – que estatisticamente, o número de reprovações num exame de graduações tende à inexistência. Mesmo que reprovações ocorram, elas não são – nem de longe – um número a ser considerado em comparação ao número de aprovações.
Sendo isto verdade, analisemos os casos de reprovação.
Tenho visto, em exames de diversas artes marciais japonesas, os instrutores chegarem perto do candidato e dizerem: “falta-te isto, falta-te aquilo…”Mas até hoje, eu NUNCA ouvi um instrutor dizer: “faltou-me ensinar-te isto, faltou-me treinar-te mais naquilo.” no final de um exame...
Atribuem-se más notas, maus desempenhos aos alunos, mas sendo uma dinâmica conjunta, o duo instrutor/aluno são, ou deveriam ser, ambos avaliados... por ser esta a forma mais justa!
Quando alguém vai a exame, as coisas que se esperam são. “nervosismo” (por saber (ou não) o que está em jogo), precipitação e pressa em fazer as técnicas ou responder às questões teóricas. Coisas pelas quais todos nós passamos. Quando fazemos exame com instrutores que nos conhecem, alguns levam em consideração tais fatores, outros instrutores (para passar uma imagem de "duros"), nem por isso. Mas pode-se contar sempre com pessoas "estranhas" nos exames para faixas pretas e, nestes casos, a compreensão do instrutor de nada irá valer e, portanto, apenas o conhecimento e treinos efetivos serão realmente úteis.
Agora vem a minha opinião pessoal, aquilo que eu "acho" que deveria ser feito (^_^)… Quando de um exame, tanto o aluno como o instrutor respectivo deveriam ser chamados ao centro do Dōjō, sendo que o "examinado" seria o aluno e o resultado do exame seria atribuído a ambos (aluno e instrutor), porque o aluno é o produto do (bom ou mau) ensino de determinado instrutor em particular.
Isso lembra-me o caso de Ōyama Masutatsu, no campeonato mundial aberto de artes marciais em 1973, onde ele disse que cometia seppuku (matava-se) se o seu estilo não vencesse a competição. Retirou a espada da bainha, colocou ao seu lado e ficou sentado à espera do resultado final. Naturalmente, os seus alunos venceram a competição porque ele sabia o que ele tinha ensinado! Foi como um tapa com luvas de pelica na esmagadora maioria dos instrutores de hoje em dia (ocidentais ou orientais): “Eu sei o que eu ensinei e garanto o resultado dos alunos que formei!”
Face o exposto acima, para concluir esta breve reflexão, resta-me apenas lembrar que o produto, o bom ou mau aluno também depende do bom ou mau instrutor e o desempenho ou resultado de um candidato a um exame de graduação (seja a graduação que for) está na razão direta do ensino recebido e determinação em fazer um bom exame demonstrada pelo aluno.
Concluo, portanto, que não ensinar e cobrar é estupidez (pura e dura)!