segunda-feira, 29 de setembro de 2014

214. UVAS #28 - Deuses, homens e o Budō.


Não há dúvida que muita coisa mudou nas artes marciais desde a restauração Meiji, mas, por razões difíceis de explicar, alguns assuntos permanecem "congelados no tempo". Um exemplo desta situação é a forma como a grande maioria dos praticantes de Artes Marciais Japonesas vê a transmissão do conhecimento marcial.

Um dos grandes problemas para efetiva compreensão da realidade marcial é que, aparentemente, ainda não há vontade efetiva para separar o que é verdadeiro do que é ilusão ou aquilo que gostaríamos como ideal daquilo que, indubitavelmente, é mesmo real. 

As pessoas esquecem, com frequência, que a história foi, é e será escrita por outros seres humanos e, seguindo esta linha de pensamento, é natural que alguns "embelezamentos" tenham sido inseridos na história a fim de dar maior (ou menor) credibilidade à história contada em cada transmissão do conhecimento.

Além disso, outro problema que é extremamente comum é achar que um mestre antigo, seja ele de que arte for, está acima dos meros mortais. Ninguém está acostumado a "questionar" um mestre. Isto seria considerado pela grande maioria dos praticantes de uma determinada arte como uma falha grave! Passível de expulsão daquele que ousou pensar em tamanha heresia! Para este grupo de indivíduos, cegos na sua própria ignorância (porque ignoram a realidade mais básica da interação humana), os mestres antigos são intocáveis: suas palavras, luz, seus ensinamentos, únicos!

O que será que causa tamanha cegueira coletiva?

Um mestre antigo foi um ser humano tão comum como eu, como tu, com acertos e (pasmem!) erros... erros tão banais como os erros que qualquer ser humano comete. Acham que os mestres antigos eram imunes à politicagem ou politiquices? Enganam-se! Acham que também não viam o que era mais "conveniente" para as suas escolas? Enganam-se novamente! Acham que nunca tiveram atitudes tão "humanas" como as nossas? Enganam-se mais uma vez!

Os mestres antigos tinham os seus altos e baixos, suas facetas louváveis e seus momentos menos "nobres", como qualquer pessoa de ontem, hoje e amanhã!

Elevar um mestre dos tempos antigos à categora de "Deus" ou "Semi-deus", inquestionável por si só é uma grande estupidez! Porque ele foi um ser humano e todos nós sabemos que "errar é humano", portanto esperar que um mestre seja "um humano perfeito" é uma ilusão irracional. E partindo-se do princípio que um mestre foi um ser humano, por que não questionar as suas decisões como fazemos no nosso dia a dia em relação àqueles que conhecemos?

Não existe um caminho que possa ser percorrido por pessoas diferentes, uma vez que ninguém caminha com os pés de outro. Portanto a "Via" é distinta para cada um. Se uma pessoa andou de uma forma, isto não quer dizer que a sua forma de percorrer o "caminho" sirva EXATAMENTE para outra pessoa. Portanto, é natural que alguém que raciocine um pouco seja capaz de entender que cada um vive a sua própria vida, com as suas próprias experiências e é este conjunto de momentos, esta sequência de "agoras" é que fazem de nós elementos únicos num universo de pluralidades. E é justamente isto que deveria se passar com o Budō...

"Mas o meu mestre deixou escrito que isso é assim!"

Caro amigo, Na realidade, o que o seu mestre deixou era "aquela forma" baseada nas suas experiências, no seu modo de ser... deixou o que julgava ser "o melhor" para ele, naquele dado momento, naquele contexto específico e inserido no seu (do mestre) circulo de atividades particulares, tendo verificado que os seus (do mestre) ensinamentos eram funcionais.

Contudo, não devemos esquecer que, diferente do que é feito hoje em dia, antigamente o treino marcial levava em conta as características de cada indivíduo em particular, adaptando as técnicas e os Kata a cada um de forma específica.

Nos dias de hoje, todos aprendem as mesmas técnicas, os mesmos Kata e esperam-se os resultados idênticos para pessoas diferentes... 

Será isto correto ou é mais uma daquelas "manobras monetárias" do ensino massivo?

Questionar, portanto, continua a ser a única forma de ver o que é melhor para si e é a fórmula correta para produzir melhores resultados, uma vez que copiar algo de forma cega e irracional nunca será a expressão verdadeira de si mesmo.

Conclui-se que não há absolutamente nada de errado em aprender com a experiência dos outros (com os mestres antigos) desde que este aprendizado seja útil para nós próprios, a fim de que possamos nos tornar melhores e não virmos a ser "uma cópia" de uma outra pessoa (ou de um outro mestre). 

Só atingiremos este raciocínio se formos capazes de entender que apenas existe nas artes marciais, no Budō o fato de um ser humano a transmitir o conhecimento a outro ser humano, sem a existência de Deuses, "divindades", semi-deuses ou pessoas que mereçam veneração, porque, numa análise elementar, só tu vives a tua vida, pois nenhum mestre andará com os teus pés!

Lembre-se sempre: não há Deuses ou semi-deuses sobre a terra e os seres humanos não devem ser venerados, mas respeitados. Sendo, o respeito, uma via de dois sentidos.
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domingo, 28 de setembro de 2014

213. UVAS #27 - A "força" do conhecimento.


212. Gongxiangjun / Kūshankū / Kōsōkun.

Hora de falar ao pessoal da Shōtōkan 松濤館, Shitōryū 糸東流 e Wadōryū 和道流...

Tomemos como ponto inicial o seguinte parágrafo:
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観空大(かんくうだい) 
クーシャンクーともいい、中国明朝の使節随随員で拳法の達人、公相君という人が伝えたといわれています。 
In 空手型全集(上)金澤弘和 

"KANKŪ-DAI 
Também KŪSHANKŪ, diz-se ter sido transmitido por uma pessoa chamada KŌSŌKUN, um emissário Chinês de ligação da Dinastia Ming (em Okinawa) que era especialista em QÚAN-F 拳法 (Kenpō)." 
In Karate Kata Zenshū (ue) Kanazawa Hirokazu. 
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Agora vamos ao que interessa! 

"(...)diz-se ter sido transmitido por uma pessoa chamada KŌSŌKUN". 

Uma vez que não sabemos japonês, a frase bem poderia ficar por aí (como tem ficado nas últimas décadas)... mas a realidade é que mesmo o nome Kōsōkun pode ser traduzido! E seguindo esta linha de pensamento, sabemos (ou refletimos sobre) o que a frase acima significa realmente? 

O interessante sobre este assunto é o nosso posicionamento histórico a respeito do Karate e os seus protagonistas principais. 

Sendo o nome de um Kata bastante conhecido em três dos quatro grandes estilos de Karatedō, o problema começa na tradução de 公相君 (Gongxiangjun / Kūshankū / Kōsōkun), onde temos: 

公 GONG / KŪ / KŌ - Público, oficial (oficializado), goernamental. 
相 XIANG / SHAN / SŌ - Oficial (posto hierárquico), conselheiro, ministro. 
君 JUN / KŪ / KUN - Sufixo que indica um homem conhecido. 

Assim sendo, 公相君 (Gongxiangjun / Kūshankū / Kōsōkun) seria traduzido literalmente como "O oficial governamental". (Isto não é óbvio? Não era ele um emissário Chinês da dinastia Ming?!) 

Eu acho que é pouco provável que alguém tenha um nome próprio como "oficial governamental". Então, quem era, qual era o nome de Gongxiangjun / Kūshankū / Kōsōkun? 

Este assunto só serve como material de pesquisa e para ver o quanto ainda não sabemos da história do Karatedō.


sábado, 27 de setembro de 2014

211. CARTAZES - KARATE.

Hoje vou apresentar um guia de referência rápida para quem quiser fazer cartazes sobre Karate o mais corretos possível. Vou mostrar o que está errado e como fazer o correto, explicando os porquês de cada afirmação.

Para tanto, dividi o assunto em quatro partes, mostrando seis tipos de cartazes:

Parte 1 - Acentos portugueses em palavras japonesas.
Parte 2 - Acentos japoneses.
Parte 3 - O uso do hífen em palavras japonesas.
Parte 4 - A solução mais fácil.

PARTE I - Acentos portugueses em palavras japonesas.

Dependendo do país em que se vive, há uma tendência muito grande em "adaptar" determinados vocábulos à linguagem nativa. Em alguns casos, ocorre mesmo o caso de "estrangeirismo" (adoção de uma palavra estrangeira pelo idioma nativo).
No caso da palavra Karate, há uma tendência no Brasil de escrever esta palavra como sendo uma palavra oxítona (sílaba tônica no final da palavra) através da utilização de um "e" fechado, isto é, com acento circunflexo. Por sua vez, Portugal utiliza um acento grave para o mesmo fim...

Brasil - Karatê. / Portugal - Karaté. (Fig. 1.)

Ambas as versões estão erradas porque já existem as palavras caratê/caraté nos dicionários portugueses, não sendo estas escritas com "K".

Assim sendo, as três formas corretas para escrever esta palavra são:

Karate - Transcrição direta da palavra japonesa (sem acento algum).
Caratê - Português escrito no Brasil (com acento circunflexo).
Caraté - Português escrito em Portugal (com acento agudo).
(Fig. 2.)

Curiosidade 1: Mesmo que no Brasil e em Portugal a palavra Karate seja oxítona (Br) / Aguda (Pt), isto é, a sílaba tônica é a última sílaba, em Japonês esta palavra é paroxítona (Br) / Grave (Pt), ou seja, a sílaba tônica é a penúltima sílaba, sendo pronunciada kaRAte (cate). (^_^)

Curiosidade 2: A palavra Jūdō. No Brasil esta palavra é escrita Judô (oxítona)... o que está 50% correto, uma vez que as duas vogais japonesas são longas, além de se aproximar bastante da pronúncia japonesa. Por outro lado, em Portugal escreve-se Judo (sem qualquer acento) e pronuncia-se "Júdo" (paroxítona/grave)...

O que interessa é: quando acentuamos uma palavra "japonesa", estamos a dizer que a vogal acentuada é "uma vogal longa". Na palavra karate não há vogais longas e, portanto, nenhuma vogal deve ser acentuada! 

O que leva ao ponto seguinte...

PARTE II - Acentos Japoneses. 

Em japonês, as vogais podem ser normais ou longas. em regra geral, a maioria das vogais longas japonesas são acentuadas com o acento "mácron", uma "barra" acima da vogal longa ("-"). A única exceção é o "i" que é grafado com duplo "i": "ii".

Na impossibilidade de utilizar o acento mácron ("-"), as regras de transcrição fonéticas japonesas permitem que seja utilizado o acento circunflexo ("^") para o mesmo fim. Por exemplo: Shitōryū ou Shitôryû <- Ambas estão corretas.

Escrever as palavras japonesas sem acento que indique as vogais longas é tão errado como escrever as palavras Portuguesas sem acentos respectivos. (Fig. 3.)
Portanto, um cartaz feito corretamente deve refletir a correção da acentuação das palavras japonesas. (Fig. 4.)

PARTE III - O uso do hífen em palavras japonesas.

Até hoje não há uma regra específica sobre a utilização (ou não) de hífen para separar sílabas, palavras ou expressões japonesas. Portanto fica a critério de cada um. (Fig. 5.)

PARTE IV - A solução mais fácil.

Se na altura que estiver a criar um cartaz não quiser levar nenhum dos pontos acima em consideração, há uma solução que permite que todos os aspectos formais sejam colocados à parte e, mesmo assim, apresentar um cartaz completamente correto. Basta que acrescente, em letras pequenas, como nota de rodapé, a seguinte frase:

"INTENCIONALMENTE SEM SISTEMA DE TRANSCRIÇÃO FONÉTICA JAPONESA."

Ao indicar isto em um cartaz, o autor reconhece a existência de um sistema oficial de transcrição fonética (forma correta de escrever as palavras japonesas com o nosso alfabeto), mas DECIDIU não o utilizar..(Fig. 6.)
Assim, sem esforço algum, o cartaz fica correto dentro das normas de correção para palavras japonesas utilizadas em Karate.
É a melhor solução? Não, não é. Mas é melhor do que apresentar um cartaz errado!

"O outro lado da moeda". A "solução mais fácil" não é a alternativa que se espera de um Karateka. O facilitismo, o "jeitinho", a acomodação são coisas de quem não sabe Karate.