Em regra
geral, em se tratando da transmissão de conhecimento, existem muitos conceitos
que causam bastante confusão no meio marcial. E a razão para o aparecimento destes
problemas de interpretação (no ocidente) sobre os conceitos japoneses reside na
falta de contexto onde estes mesmos conceitos devem ser aplicados.
Um destes
conceitos, bastante recorrente, é a expressão SHINGITAI 心技体, literalmente: “Espírito, técnica
e corpo”.
Como sempre,
vamos – em primeiro lugar – entender a expressão japonesa e só depois tecer os
devidos comentários.
Esta expressão
é composta por três ideogramas:
心 SHIN –
“Espírito”.
技 GI – “Técnica(s)”.
体 TAI –
“Corpo” ou “condicionamento físico”.
Antigamente, dizia-se
que o treino deveria ser feito de tal forma que a importância em cada área
fosse 60%, 30% e 10% respectivamente, dando atenção ao treino do “espírito” em
primeiro lugar, depois às técnicas e, por fim, ao condicionamento físico.
É simples entendermos sobre o que tratam as partes da “Técnica” e a parte do “Condicionamento
físico”, mas as coisas ficam bastante complicadas quando entramos no terreno “Espírito”.
Antes de tudo,
cumpre-me chamar a vossa atenção para o fato do que a abordagem a ser feita a
seguir representa a minha opinião e experiência pessoal no ensino desta
expressão àqueles com quem partilhei conceitos básicos japoneses e é uma forma
bastante simples para fazer entender algo que pode ser bastante complexo, dependendo do grau de profundidade dado a esta expressão. Além disso, testei os
conceitos a seguir na vida diária e comprovei que estes correspondem à realidade que eu vivi
e vivo.
Colocadas as
considerações iniciais, passemos à pergunta fundamental e crucial que origina qualquer
discussão ao redor desta expressão: “o
que é o espírito?”
É exatamente
neste ponto que 99,99% daqueles que abordam este assunto cometem as maiores
barbaridades! Por quê? Porque esquecem o mais elementar dos fatores: o
contexto! O “contexto” é capaz de explicar praticamente tudo a respeito das
artes marciais japonesas, desde que entendido corretamente. Falar sobre “espírito”
ou “espiritualidade” implica saber “onde” e “como” esta “espiritualidade” está
inserida quando da sua utilização num determinado contexto – neste caso, as
artes marciais.
Assim, em
primeiro lugar, é necessário “posicionar” o assunto no contexto correto!
Quando autores
ocidentais abordam o assunto SHINGITAI, frequentemente o ideograma SHIN “espírito”
remete a matéria para o campo da fé, da religiosidade, do misticismo, das “forças
invisíveis” e, portanto, “algo” forçosamente DEVE “justificar” esta linha de
pensamento!
Como este
pensamento orientado à religiosidade exige uma justificativa para a qual não há
qualquer fundamentação efetiva que o conecte diretamente com as artes marciais, os disparates
começam a surgir: atribui-se o termo “Zen” a quase TUDO que se faça a nível de
Budō (pois “algo” TEM DE “justificar” a religiosidade)... nem que seja um devaneio pouco racional!
Assim, de
forma bastante grosseira, irrefletida e simplista, abrevia-se «Espiritualidade
= Zen», porque no ocidente vemos “espiritualidade” SEMPRE ligada a uma “religião”
(católica, budista, judaica, etc). Consequentemente,
seguindo esta linha de pensamento, “as artes marciais têm de ter uma “religiosidade”
associada"!
ERRADO!
Se alguém com
um excelente condicionamento físico for ao chão e não tiver “espírito” (força de
vontade) para levantar… de que adianta o condicionamento físico?
Se alguém com
uma técnica impressionante não tiver “espírito” (vontade ou determinação) para
combater… de que adianta a técnica?
O que comprova
que o treino do “espírito” (aquilo que nos faz avançar e a superar as nossas próprias dificuldades) é «ou deveria ser», realmente, o ponto mais importante a ser trabalhado.
Se estivermos
em mau ou péssimo condicionamento físico, mas a nossa mente (“espírito”) disser
para levantarmos e continuar, então levantamos e continuamos! Se as nossas
técnicas não forem boas o suficiente, mas a nossa mente (“espírito”) disser para
continuarmos a lutar, então continuaremos a lutar!
Enquanto o “espírito”
ocidental está direta ou indiretamente ligado, realmente, a uma corrente “religiosa”
(seja ela qual for), a IDEIA de “espírito” a nível marcial pode ser direcionada
a determinado campo de atividade e NÃO implica necessariamente uma religião ou
filosofia específica. Por exemplo, no oriente, pode-se muito bem passar uma
vida inteira atrás da “iluminação” espiritual e nunca a atingir (devido a fatores
diversos) e – simultaneamente – ser um excelente guerreiro! Porque o “espírito”
marcial” nada tem a ver com o “espírito religioso”! É justamente a respeito
do “espírito marcial”, do “espírito de guerreiro” que faz referência a
expressão SHINGITAI… Não está escrito em parte alguma que o SHINGITAI tem a ver
com alguma religião ou filosofia em particular! Esta “suposição” pouco
refletida é coisa “recente”.
O “espírito
marcial” a que se refere a expressão SHINGITAI é a nossa determinação, é a
nossa vontade, o nosso empenho particular. É a nossa honra, a nossa moral, a nossa
ética, a nossa “retidão espiritual”. E isso é visível nas palavras dos mestres antigos:
佛神は尊し佛神をたのます。“Mesmo que
Buda e os Deuses sejam importantes, não dependa das suas providências.”
Miyamoto
Musashi – in "Os 21 preceitos do Dokkōdō."
正勝吾勝勝速日。“A vitória
será verdadeira, justa ou correta na medida em que for sobre nós mesmos e todos
os dias temos a chance de alcançá-la.”
Ueshiba
Morihei – Fundador do Aikidō.
力必達。“Se
alguém se esforçar (realmente), atingirá os seus objetivos.”
Kanō
Jigorō – Fundador do Jūdō.
Nestes
casos há referência ao esforço pessoal, sendo que Miyamoto vai mais longe e diz
que (na hora do combate) o melhor é contar consigo mesmo. Mas,
também é sabido que a cultura do “esforço pessoal” tem sido bastante menosprezada
nestes últimos tempos… “A Lei do menor esforço”, dizem.
Portanto,
o SHIN, o “espírito” de SHINGITAI não traz em si qualquer religiosidade, é apenas a expressão do nosso esforço diário, dentro ou fora do Dōjō, ajudando-nos a levantar a cada queda, com determinação e empenho - tornando-nos mais fortes a cada dia, independente da idade, sexo, constituição física ou grau técnico, pois é isso
que se espera de um guerreiro e, de forma bastante simples, nada tem a ver com uma
religião ou filosofia específica (sendo que estas podem, na realidade, auxiliar
o processo de fortalecimento mental do praticante).
Para finalizar, por
SHIN "espírito" entenda-se a seguinte expressão: 倒れて後止む。”Só
pare de lutar DEPOIS de morto!”
muito bem explicado, parabéns. oxalá que os mais novos tenham a oportunidade de ler esta lição.
ResponderExcluira minha experiencia diz que se pode adquirir esse "espirito" nas artes marciais, mas nâo hà regra sem senão. eu no passado já distante vi um pescador de Alvor de fraca estrutura fisica que levava um murro de outro pescador, tornava a se levantar levava outro tornava a cair e assim por diante, foi impressionante, isto é "espirito" de combate. continua com o execelente trabalho.
Reis Sensei. Obrigado pelas suas palavras!
ResponderExcluirRealmente, o termo "espírito" ao qual se refere o SHINGITAI 心技体 «"Espírito, técnica(s) e Corpo (condicionamento físico)"» tem muito mais a ver com TŌKON 闘魂 «"Espírito combativo", "Vontade de lutar", "Tenacidade"» do que com uma religião específica qualquer.
Não devemos misturar coisas (Artes Marciais e Religião) que - à partida - devem ser mantidas nos seus devidos lugares.
押忍!OSU!
(^_^)b